quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Brasil desembarca no Festival de Berlim com 12 filmes no rastro da politização


Na última sexta-feira, vidraças amanheceram estouradas e uma tinta rosa avermelhada, escorrendo como sangue, encobria a placa que identifica o prédio da embaixada brasileira em Berlim.
Foi o segundo ataque à sede da missão diplomática do país na Alemanha desde que Jair Bolsonaro tomou posse, em janeiro.
É neste cenário que 12 filmes brasileiros serão recebidos com atenção especial ao estrearem, a partir desta quinta-feira (7), no Festival de Berlim, uma das principais mostras de cinema do calendário. Existe uma curiosidade internacional em torno de como esses títulos refletirão a onda conservadora no país.
A resposta com menos rodeios vem sob a forma de "Marighella", cinebiografia sobre o guerrilheiro esquerdista que marca a primeira investida do ator Wagner Moura na direção. A obra faz parte da seção principal do evento, mas não concorre ao Urso de Ouro.
"O filme é uma manifestação de claro enfrentamento a essa mediocridade", afirma o diretor estreante, que filmou a obra no começo do ano passado, quando a possibilidade de o candidato do PSL ser eleito "era uma loucura", segundo diz. "Mas já vivíamos um movimento conservador. Hoje somos uma piada internacional".
Com a presidência agora ocupada por um capitão reformado, lançar um filme que revisita fantasmas da ditadura militar ganha novos contornos. "Suponho que as percepções serão mais radicais nesse momento de disputa de narrativa, de gente dizendo que aquela época não foi tão ruim assim".
A trama, inspirada na biografia de mais de 700 páginas escrita pelo jornalista Mário Magalhães, acompanha os últimos anos da guerrilha urbana empreendida por Marighella. Moura, interditou ruas em pleno centro de São Paulo, descreve a linguagem da obra como um misto de drama de época e filme de ação.
Quem assume o papel principal é Seu Jorge. A escolha do músico e ator, que é negro, para interpretar o guerrilheiro, que era filho de italiano e neto de escrava, já em si um manifesto.
"A gradação da cor da pele me interessava pouco", diz o diretor. "Não há como discutir qualquer questão social do Brasil sem falar da questão racial. Para mim, Marighella tinha que ser negro".
O diretor, que colheu relatos de ex-integrantes dos grupos de luta armada ALN e MR-8, diz estar ciente de que o filme pode gerar reações violentas. "Mas também vai ser abraçado por muita gente", crê.
"Não é uma obra cartesiana, eu quis abordar a complexidade. Marighella não era bonzinho, era um radical enfrentando uma força opressora com violência semelhante à que estava submetido".
"Divino Amor", do recifense Gabriel Mascaro, é outro que desembarca na capital alemã no rastro da politização. Logo que estreou, em Sundance, essa distopia sobre um Brasil neopentecostal foi encarada como referência direta ao governo Bolsonaro pelas revistas Variety e Hollywood Reporter.
"Quando escrevemos, nós não tínhamos a menor ideia do que aconteceria hoje", afirma Lucas Paraizo, um dos roteiristas do filme. "Pensamos na distopia, mas a distopia virou a realidade".
O longa acompanha a jornada de uma mulher religiosa (Dira Paes) que sonha engravidar, mas não viu seu desejo atendido pela providência divina. O ano é 2027, e o Carnaval deixou de ser a maior festa dessa sociedade agora casta - o que não impede que haja outras celebrações sensuais para os brasileiros do futuro.
Para Mascaro, que tem produção consistente na área das artes visuais, "Divino Amor" marca uma guinada narrativa em sua carreira. "Ventos de Agosto" e "Boi Neon", seus longas anteriores, apelam mais para a experiência sensorial, dotada de plasticidade e sensualidade, do que para história que se conta.
Paraizo, que tem se notabilizado pelo roteiro de obras bastante politizadas ("Sob Pressão", "Domingo"), foi quem ajudou a fazer essa costura entre a "poesia e a dramaturgia", como descreve.
"O desejo era falar da relação entre fé e corpo, mostrar até onde o fundamentalismo pode levar, mas sem abandonar a criação de uma estética", conta.
As convulsões do Brasil de 2019 respingam em outros títulos da Berlinale. Há espaço para discutir o racismo ("O Ensaio"), a precariedade das relações de trabalho ("Estou me Guardando para Quando o Carnaval Chegar"), a questão agrária ("Chão") e gênero e sexualidade (o drama "Greta", com Marco Nanini, e o documentário "A Rosa Azul de Novalis").
Já "Espero a tua (Re)Volta" trata das ocupações de escolas públicas por adolescentes paulistas em 2015 - um entre os vários longas descritos no catálogo do festival com alguma menção à ascensão da direita no país. 
Em outros anos, os diretores e as equipes de todos esses filmes seriam convidados para um coquetel na embaixada brasileira em Berlim. Em 2017, na primeira edição após o impeachment de Dilma, os cineastas leram ali um manifesto contra Michel Temer.
Neste ano, contudo, a recepção foi cancelada quatro dias antes de começar o festival. Procurado, o Ministério das Relações Exteriores não informou o motivo, que pode ou não ter a ver com os recentes ataques à embaixada. Mas nas redes sociais, o setor logo começou a conjecturar que a decisão pode ter motivação política. Ofereceriam brinde a um filme sobre o guerrilheiro Marighella em pleno governo Bolsonaro?
Não haveria, de qualquer forma, como evitar a politização. Dentre as principais mostras de cinema, a Berlinale sempre foi a mais militante, o que gerou até atritos diplomáticos neste ano.
O premiê israelense, Binyamin Netanyahu, pediu ao governo alemão que pare de financiar a mostra de cinema, com orçamento anual na casa dos US$ 30 milhões (R$ 110 milhões). O motivo? O suposto apoio do festival ao movimento pró-palestino BDS, que prega o boicote a Israel.
Em seu último ano à frente da direção do evento, Dieter Kosslick não confirmou nem negou o apoio da Berlinale à causa. Há inclusive, produções israelenses na programação. "Posso imaginar que ele [Netanyahu] não goste dos filmes que exibimos. Nós tampouco gostamos de muitas das coisas que ele faz", afirmou.
Essa verve progressista do festival, antenada às grandes questões sociais de seu tempo, aparece na seleção de longas que disputam o Urso de Ouro, principal prêmio.
Na competição, o parisiense François Ozon cutuca feridas da Igreja Católica com "Grâce à Dieu", sobre homens atormentados pelos abusados que sofreram de um padre na adolescência.
Zhang Yimou ("Nenhum a Menos") rememora as cicatrizes da Revolução Cultural na China com "One Second", centrado num prisioneiro que escapa de um campo de trabalhos forçados. Já o italiano Claudio Giovannesi fala da violência como construção da identidade de jovens napolitanos em "La Paranza dei Bambini", inspirado em romance de Roberto Saviano ("Gomorra").
O país sede da mostra também se debruça sobre seus esqueletos no armário. O nazismo, que um marchou sobre a cidade, ecoa no discurso da AfD (Alternativa para a Alemanha), partido nacionalista e anti-imigração que hoje tem assentos no Parlamento.
Os entusiastas da agremiação não foram esquecidos por Dieter Kosslick, o diretor da Berlinale, quando anunciou a inclusão do documentário "Who Will Write Our History?" na seleção. O filme traz imagens do Gueto de Varsóvia. "Todos devem vê-lo. E para os membros da AfD, pago os ingressos do meu próprio bolso". (Folhapress)

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