A
Caixa Cultural traz a Curitiba a exposição “O Tempo dos Sonhos: A Arte
Aborígene Contemporânea da Austrália”. Com um acervo de mais de 70 obras entre
pinturas, esculturas, litografias e bark paintings (pinturas em entrecasca de
eucalipto), a mostra apresenta a expressão artística e as narrativas da cultura
aborígene. Com abertura ao público entre 29 de novembro de 2017 e 7 de janeiro
de 2018, a mostra tem visitação gratuita.
A
seleção abrange obras desde a década de 1970, período em que a Austrália deu
início a políticas de valorização e resgate dessas comunidades, e de um
movimento em prol da difusão de sua rica e diversificada arte. A exposição é
composta por peças da Coo-ee Art Gallery, a mais antiga e respeitada galeria de
arte aborígene da Oceania, além de obras de instituições governamentais
australianas e também de coleções privadas. Segundo o curador Clay D’ Paula,
especialista em História da Arte pela Universidade de Sidney,a mostra é
representativa da variedade e da vitalidade dos estilos artísticos encontrados
nas diversas regiões australianas.
As
obras selecionadas situam-se entre a abstração e a figuração. A maioria dos
povos aborígenes utiliza símbolos, e não a linguagem escrita. A estética desses
artistas é inspirada em narrativas e histórias repassadas de geração a geração,
e exprimem, muitas vezes, o seu relacionamento com o universo, a natureza e a
espiritualidade.
Ao
longo da mostra, é possível perceber as diferenças no design, no estilo e nas
cores da paleta dos artistas de cada região. A paisagem presente na arte
produzida na região de Kimberly, por exemplo, revela uma terra de grandes
contrastes, cheia de rios e cachoeiras. Arnhem Land (Terra de Arnhem) é a
região das bark paintings. Em Tiwi Island (Ilhas Tiwi), as obras trazem
elementos de design geométrico relacionados a lugares sagrados ou a mudança das
estações. E nas obras da região de Balgo, os visitantes poderão observar a
presença de cores intensas, muitos tons de verde, roxo e cores brilhantes. Estes
trabalhos são denominados "arte do isolamento", pois são produzidos
no deserto ocidental da Austrália. Já a arte dos aborígenes que vivem nos
centros urbanos traz questões ligadas às mazelas da colonização e à
discriminação ainda sofrida por eles.
As
diferenças da arte produzida em cada região passam também pelas técnicas
utilizadas. Ilana Goldstein, antropóloga e consultora da exposição, aponta
algumas dessas diferenças: "Os materiais que são comumente utilizados no
Deserto Central da Austrália, como tinta acrílica, tela e pincéis
industrializados, não são utilizados pelos artistas da região de Arnhem Land,
no norte tropical da Austrália. Os artistas dessa região preferem usar camadas
do tronco do eucalipto nativo, tintas feitas de minerais do solo, pincéis de
fios de cabelo e gravetos".
As
obras selecionadas para a exposição foram produzidas por artistas renomados que
já tiveram trabalhos expostos no MoMA e Metropolitan de Nova Iorque. Também
passaram pelas bienais de Veneza, São Paulo e Sidney, entre outros eventos de
prestígio internacional, como o Documenta, em Kassel, na Alemanha. “Essa
coleção é um presente à população brasileira. Em um acervo de mais de três mil
obras, selecionamos aquelas mais significativas. Muitas já foram publicadas em
inúmeros catálogos de arte, citadas em teses de dourado e exibidas em várias
instituições na Austrália, Europa e Estados Unidos”, conta o brasileiro Clay
D´Paula que divide a curadoria com os australianos Adrian Newstead e Djon
Mundine.
Os
artistas - A exposição traz obras de artistas de diversas trajetórias: aqueles
que utilizam elementos tradicionais, com pouco contato com o mundo ocidental, e
também os ditos "artistas urbanos", que possuem formação
universitária e se relacionam com a arte contemporânea. Na percepção da
antropóloga Ilana Goldstein, "na questão da formalidade, as telas
abstratas de artistas como Emily Kame e Rover Thomas aliam deleite estético com
conteúdos cosmológicos tradicionais, e não pretendem fazer provocações
conceituais. Já os artistas aborígenes urbanos fazem releituras satíricas da
história da arte e questionam a lógica do sistema das artes, como no caso de
Richard Bell, autor do trabalho ‘Aboriginal art is a white thing’, e de Lin
Onus, que se apropria da gravura ‘A onda’ do japonês Hokusai."
Um
dos artistas de maior projeção internacional, Rover Thomas (1926-1998), com
seus cenários de cor ocre, mudou a percepção paisagística australiana. Thomas
também foi responsável por um novo ritual nas cerimônias do povo Gija, que
consiste em inserir tábuas pintadas no rito já tradicional. A tia dele, Queenie
McKenzie (1930-1998), que também tem obras na exposição, foi a responsável por
começar a pintar as tábuas cerimoniais.
Outra
artista de destaque na exposição é Emily Kame Kngwarreye (1910-1996),
considerada uma das maiores pintoras expressionistas do século XX. Emily
começou a pintar aos 79 anos e se tornou a artista mais querida da Austrália.
Ela representou o país na Bienal de Veneza e em outros eventos de arte
internacional. Suas obras, que parecem abstratas, trazem elementos como nuvens,
água, vegetação e flores do deserto, que compõem narrativas e histórias
herdadas de seus ancestrais.
Já
Kathleen Patyarre (1934), que é sobrinha de Emily Kame, é autora de pinturas
que retratam mapas mentais das regiões por onde caminhou com seus pais durante
a infância. Muito prestigiada, ela é recordista em convites para exposições.
Lily
Nungarayi Hargraves (1930), anciã da tribo Lajamanu, é responsável pela
cerimônia de iniciação feminina chamada “O Sonhar das Mulheres” e já pintou
diversas telas relacionadas a este ritual, inclusive a que está presente na
exposição. Suas obras já foram expostas na França e nos Estados Unidos.
Richard
Bell (1953), por sua vez, é um "artista urbano”, de origem Kamilaroi, que
se tornou ativista em prol dos direitos das populações indígenas. Suas críticas
mais contundentes se dirigem à folclorização do aborígene. Outro “artista
urbano” é Lin Onus (1948-1996), descendente da etnia Yorta Yorta. Ele deixou
trabalhos com teor histórico, muitas vezes irônicos e provocativos,
caracterizados pela figuração realista. Uma das obras expostas tem inspiração
na xilogravura "A Onda", de 1829, do japonês Katsushika Hokusai. Na
recriação de Lin Onus, um cão (herança do colonizador branco) surfa sobre a
arraia (animal sagrado, sereno e equilibrado), apesar do perigo iminente. É
possível que a tela, em seu conjunto, remeta à capacidade dos povos aborígenes
de se reinventarem constantemente, se adaptarem a novas realidades e assimilarem
influências de diferentes origens, sem necessariamente perder o prumo.
Um
exemplo da importância da arte aborígene para o mercado das artes vem de
Clifford Possum Tjapaltjarrl (1933-2002), da etnia Anmatyerre que vive no
deserto australiano. Ele teve uma tela leiloada por 2,4 milhões de dólares, em
2007, na Southeby’s, arrematada pela National Gallery of Australia. Trata-se de
tela produzida em 1977, que condensa diversos fragmentos míticos. Clifford já
teve uma obra apresentada no Brasil, durante a Bienal de São Paulo de 1983.
Thompson
Yulidjirri (1930) é representante do estilo “raio X”, que traz certa
continuidade das pinturas rupestres antigas às bark paintings – imagens
executadas sobre entrecasca de árvore. Tal estilo, que usa a representação dos ossos
e vísceras dentro dos corpos, como se fossem transparentes, pode ser observado
na prancha intitulada Canguru, de 1985.
Além
de mostrar as diversas expressões, a exuberância, a vitalidade e a história da
arte aborígene ao povo brasileiro, a exposição também estimula a atenção para a
arte indígena produzida no Brasil. Enquanto o estilo aborígene australiano é
mostrado em vários museus de arte, as expressões artísticas dos indígenas
brasileiros são tidas, em sua grande maioria, como artesanato. O Xoha Karajá é
um artista indígena brasileiro, da etnia Iny/Karajá. Sua obra foi especialmente
comissionada para integrar a exposição. Trata-se de uma mandala, com
significado bastante forte: a harmonia entre todos os povos.
Sobre
as bark paintings - As bark paintings compõem a arte aborígene característica
de Arnhem Land, no norte tropical. Foram as primeiras obras aborígenes a
conquistar a atenção do público ao redor do mundo. São pinturas sobre
entrecasca de eucalipto, conhecidas desde o início do século XX, e feitas com
pigmentos naturais nos tons ocre, branco, vermelho e preto. Essas obras
carregam complexas simbologias associadas aos clãs e aos ancestrais. Em geral,
as bark paintings são figurativas e funcionam como narrativas visuais sobre
passagens míticas. Os pincéis utilizados em algumas delas são feitos com
cabelos humanos. Além disso, são usados pigmentos naturais, com materiais
orgânicos.
O
curador Clay D'Paula enfatiza que as bark paintings estão entre as formas de
expressão artística mais antigas do mundo, e, provavelmente, podem ser datadas
do mesmo período das pinturas rupestres, feitas há 40 mil anos. “No entanto,
essa forma de arte pode ser tão contemporânea como qualquer outra, e muito
aberta à inovação" destaca D’Paula.
“O
Tempo dos Sonhos” - O título da exposição resgata a mitologia aborígene sobre a
criação do universo e a forma como esses povos registram o conhecimento
transmitido de geração a geração. De acordo com a crença, o “Tempo do Sonho” é
uma era sagrada na qual espíritos ancestrais formaram o mundo e as leis que o
regem.
Para
os aborígenes, “sonhar” é viver em sintonia com o mundo natural; é aprender com
a natureza e as pessoas que os cercam e contribuir para o ensinamento aos mais
jovens. O conhecimento é retratado pelas pinturas e demais obras,
caracterizadas por iconografia peculiar. Para o artista aborígene, pintar os
“sonhos” representa transmitir ideias e histórias a fim de mantê-las vivas.
Nessas comunidades, o fazer artístico é, portanto, prática fundamental para
transmissão do conhecimento sobre o universo.
História
da arte aborígene australiana - A arte aborígene é a mais antiga tradição
artística contínua do mundo. Antes, tais expressões artísticas eram tratadas
como mero ofício dos povos aborígenes, frutos do ato de criar peças e símbolos
que os ajudavam na lida diária. A partir de 1950, porém, o fazer aborígene
começou a ser tratado como arte. Tal história apresenta várias fases que se
sobrepõem, e têm fronteiras indefinidas.
A
década de 1970 marca o reconhecimento da arte aborígene, que passa da condição
de atividade etnográfica à classificação como artes plásticas vivas, com a
abertura de dezenas de cooperativas em comunidades indígenas.
Uma
das razões da inserção da arte aborígene no mercado internacional foi a
iniciativa do governo australiano que criou o Aboriginal Arts Board, em 1973.
Composto por representantes indígenas, o órgão comprou, regularmente, durante
20 anos, obras para coleções públicas, sendo que algumas foram doadas para
embaixadas e museus ao redor do mundo, ou inseridas em exposições nacionais e
internacionais.
Trata-se
de um processo que levou décadas e só foi possível devido ao engajamento de uma
série de pessoas e instituições e, sobretudo, em razão da criação de políticas
públicas voltadas ao fomento da produção artística indígena.
Na atualidade, a arte aborígene da Austrália movimenta cerca de 200 milhões de dólares por ano. Estima-se que haja mais de sete mil artistas aborígenes no país – e que 50% dos artistas australianos descendam de indígenas. Atualmente, os povos aborígenes criam suas peças com o intuito de produzir arte inspirada nas tradições indígenas, e não utensílios. “A arte aborígene é sinônimo de resiliência, resistência e afirmação. Existe algo mais contemporâneo que isso?”, ressalta Clay D’Paula.
Na atualidade, a arte aborígene da Austrália movimenta cerca de 200 milhões de dólares por ano. Estima-se que haja mais de sete mil artistas aborígenes no país – e que 50% dos artistas australianos descendam de indígenas. Atualmente, os povos aborígenes criam suas peças com o intuito de produzir arte inspirada nas tradições indígenas, e não utensílios. “A arte aborígene é sinônimo de resiliência, resistência e afirmação. Existe algo mais contemporâneo que isso?”, ressalta Clay D’Paula.
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