A imaginação não tem fronteiras, nada
limita nossa mente, que transcende qualquer tipo de cerceamento físico. E os
melhores guias para essas viagens que permitem o crescimento pessoal são os
livros, verdadeiras janelas para os mais variados universos. Essa liberdade foi
oferecida aos apenados da Penitenciária Central do Estado (PCE) e do Presídio
Feminino de Piraquara (PFP), por meio da Roda de Leitura oferecida pela
Fundação Cultural de Curitiba, no último mês de julho e que terá continuidade
em setembro.
O trabalho, resultado de uma parceria
com a Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do Governo do Estado,
foi desenvolvido por mediadores de leitura do Programa Curitiba Lê, e teve por
objetivo fortalecer o Projeto de Remição da Pena pelo Estudo através da
Leitura. “Ficamos emocionados com os relatos dos servidores da Fundação
Cultural, pois sabemos da grandiosidade desse trabalho e o quanto pode
contribuir e fazer a diferença na vida dessas pessoas que se encontram privadas
de liberdade”, disse Agda Cristina Ultchak, do Departamento de Execução Penal,
em mensagem enviada ao presidente da FCC, Marcos Cordiolli.
“São momentos como esses que nos fazem
acreditar que estamos no caminho certo e que nos estimulam a prosseguir”,
afirmou a coordenadora de Educação, Qualificação e Profissionalização de
Apenados da Secretaria de Estado da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos, Glacélia
Quadros.
A semente plantada deu bons frutos e a
Roda da Leitura volta a ser realizada nesses locais, a partir do próximo mês de
setembro. A Fundação Cultural de Curitiba também doou 2,5 mil livros para o
Departamento Penitenciário do Estado do Paraná (Depen). Os exemplares estarão
disponíveis em 11 unidades penais para 330 apenados que participam do projeto.
Os livros repassados vieram de doações da comunidade e de títulos viabilizados
pela Lei de Incentivo à Cultura. Entre os gêneros doados estão autoajuda,
religião, enciclopédias, livros técnicos, livros de artes e de história, entre
outras edições que não foram aproveitadas pelas Casas de Leitura e Tubotecas.
Solidão libertária – Sob o nome de
Leituras Diáfanas da Solidão na América Latina, 12 detentas da Penitenciária
Central Feminina realizaram, em oito sessões, a leitura da obra Cem Anos de
Solidão, de Gabriel Garcia Márquez, com a orientação dos mediadores da FCC
Lilian Soares, Leandro Toporowicz, Anna Carolina Ulandovski Azevedo, Diamila
Medeiros dos Santos e Alana Saiss Albinati.
O realismo fantástico de García Márquez
e as fases que compõem a grande história em Cem Anos de Solidão construíram outro lugar, para
além das sentenças, das celas, da violência, da linguagem penitenciária.
“Macondo, a cidade onde tudo acontece na narrativa, foi o assunto dominante e
permitiu reelaborações de perspectivas, de tentativas de ordenação do caos
interno de cada uma das participantes, de reflexões sobre a chance de voltar a
viver em sociedade”, relata Lilian Soares.
“Ter
participado da atividade na penitenciária foi uma experiência incrível”, afirma
Leandro Toporowicz. “Houve identificação com as personagens – nas quais elas
projetavam a si mesmas ou outras pessoas – e com as situações vivenciadas no
romance. Essa identificação, ao mesmo tempo em que causava uma reflexão acerca
de acontecimentos pessoais, propiciava um desprendimento das próprias
identidades e do meio no qual vivem. No romance há um episódio que descreve uma
máquina que apaga as lembranças ruins e, durante a leitura desse trecho, uma
das participantes comentou, com um misto de graça e tristeza: ‘É de uma assim
que eu preciso’”, lembra Leandro.
E muitas outras apenadas deram
depoimentos. Aqui elas não têm nomes, para manter o sigilo de suas identidades,
mas todas manifestaram a satisfação em integrar a Roda de Leitura. “Só tenho a
agradecer, principalmente a Deus, pela oportunidade de trazer até o Sistema
Penitenciário esses mediadores da Fundação Cultural de Curitiba”, disse uma
delas. “Muito obrigada por investir em nós e trazer cultura, mas não só cultura
como também confiança”, ressaltou outra. “Não desistam de nós”, apelou mais
uma.
E é a vontade de continuar o trabalho
que move os jovens mediadores. “Na PFP há agora uma pequena cela que contém
cerca de 70 obras de ficção, recebidas por meio de doações, além dos livros
técnicos doados pela FCC. Essas obras precisam atender a ânsia por narrativas
das cerca de 200 detentas. Depois dos nossos encontros na Roda de Leitura, teve
início um processo de dissecação da biblioteca. Durante as visitas também
levamos doações – livros nossos que não lemos mais, dos nossos amigos que
souberam das visitas e quiseram contribuir. Cada livro doado foi dormir em
alguma cela e cerca de 200 páginas em média foram devoradas em um dia por
muitas das apenadas”, conta Lilian.
Nascida em Londrina, Lilian veio para
Curitiba em 2009 para cursar Letras na Universidade Federal do Paraná,
interessada em estudar literatura francesa. Hoje, sua visão é outra. Pensa em
esmiuçar os processos de leitura, ampliando o acesso à literatura em todas as
suas vertentes. Trabalhando no Bondinho da Leitura, na Rua das Flores, Lilian
completa: “A ideia é ir devagar, pois precisamos atender a incontáveis
instituições na cidade, além dessa demanda, mas com ações bem dirigidas”.
Sensibilidade e experiência – Na
Penitenciária Central do Estado (PCE), a Roda de Leitura sob a denominação de A
Fase Hieroglífica do Pensamento permitiu que dez apenados tivessem a
oportunidade de conhecer obras como Campo Geral, de Guimarães Rosa – uma
narrativa extremamente lírica, que demonstra a emoção e o poder das palavras –,
Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto – poema dramático sobre a
triste saga de um imigrante nordestino, abordando aspectos climáticos e
socioeconômicos –, e Memórias do Subsolo, romance realista de Fiódor
Dostoiévski, com questionamentos sobre a sociedade.
“A
impressão que tive ao término da primeira sessão da Roda de Leitura foi a mais
positiva possível. Os participantes não só interagiram bem com as obras como
demonstraram interesse na continuidade da atividade e, o que é mais importante,
reconheceram que a mediação foi fundamental para auxiliá-los a travar uma
relação mais ativa e enriquecedora com os textos”, analisa Murilo Coelho,
mediador da Fundação Cultural de Curitiba.
Murilo defende a literatura como fonte
de troca de experiências, envolvendo sensibilidade e experiências que nos
tornam realmente semelhantes uns aos outros: “Afinal, qual ser humano não
conhece a dor, o ódio, a solidão, o sofrimento, o amor, a amizade, a traição? A
literatura trata dessas e de outras questões que estão tão fora de moda em
nosso contexto contemporâneo, colocando-nos diante da própria vida e no coração
de suas mais tensas contradições e aflições”.
Junto com o também mediador Bruno
San’Roman, Murilo desenvolveu a Roda de Leitura, lembrando que a ação não se
restringe somente à leitura de textos, englobando também discussões a respeito
de questões sociais, psicológicas, estéticas e afetivas, que estão ausentes de
nossa sociedade, a cada dia mais sectária e individualista.
Estudante de Letras Português da
Universidade Federal do Paraná, Murilo Coelho integra a equipe da Casa da
Leitura Miguel de Cervantes, na Praça da Espanha, e pretende que a atividade no
presídio seja a primeira fase de uma longa parceria entre a Fundação Cultural e
a Secretaria de Justiça. “Somente aqueles que amam a cultura sabem o quanto
esse prazer é revigorante e fundamental para nós que trabalhamos em um país tão
desafeito à educação”, enfatiza.
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