sábado, 31 de agosto de 2013

Fundação Cultural oferece Roda de Leitura para detentos paranaenses

A imaginação não tem fronteiras, nada limita nossa mente, que transcende qualquer tipo de cerceamento físico. E os melhores guias para essas viagens que permitem o crescimento pessoal são os livros, verdadeiras janelas para os mais variados universos. Essa liberdade foi oferecida aos apenados da Penitenciária Central do Estado (PCE) e do Presídio Feminino de Piraquara (PFP), por meio da Roda de Leitura oferecida pela Fundação Cultural de Curitiba, no último mês de julho e que terá continuidade em setembro.
O trabalho, resultado de uma parceria com a Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do Governo do Estado, foi desenvolvido por mediadores de leitura do Programa Curitiba Lê, e teve por objetivo fortalecer o Projeto de Remição da Pena pelo Estudo através da Leitura. “Ficamos emocionados com os relatos dos servidores da Fundação Cultural, pois sabemos da grandiosidade desse trabalho e o quanto pode contribuir e fazer a diferença na vida dessas pessoas que se encontram privadas de liberdade”, disse Agda Cristina Ultchak, do Departamento de Execução Penal, em mensagem enviada ao presidente da FCC, Marcos Cordiolli.
São momentos como esses que nos fazem acreditar que estamos no caminho certo e que nos estimulam a prosseguir”, afirmou a coordenadora de Educação, Qualificação e Profissionalização de Apenados da Secretaria de Estado da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos, Glacélia Quadros.
A semente plantada deu bons frutos e a Roda da Leitura volta a ser realizada nesses locais, a partir do próximo mês de setembro. A Fundação Cultural de Curitiba também doou 2,5 mil livros para o Departamento Penitenciário do Estado do Paraná (Depen). Os exemplares estarão disponíveis em 11 unidades penais para 330 apenados que participam do projeto. Os livros repassados vieram de doações da comunidade e de títulos viabilizados pela Lei de Incentivo à Cultura. Entre os gêneros doados estão autoajuda, religião, enciclopédias, livros técnicos, livros de artes e de história, entre outras edições que não foram aproveitadas pelas Casas de Leitura e Tubotecas.

Solidão libertária – Sob o nome de Leituras Diáfanas da Solidão na América Latina, 12 detentas da Penitenciária Central Feminina realizaram, em oito sessões, a leitura da obra Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Márquez, com a orientação dos mediadores da FCC Lilian Soares, Leandro Toporowicz, Anna Carolina Ulandovski Azevedo, Diamila Medeiros dos Santos e Alana Saiss Albinati.
O realismo fantástico de García Márquez e as fases que compõem a grande história em Cem Anos de Solidão construíram outro lugar, para além das sentenças, das celas, da violência, da linguagem penitenciária. “Macondo, a cidade onde tudo acontece na narrativa, foi o assunto dominante e permitiu reelaborações de perspectivas, de tentativas de ordenação do caos interno de cada uma das participantes, de reflexões sobre a chance de voltar a viver em sociedade”, relata Lilian Soares.
 “Ter participado da atividade na penitenciária foi uma experiência incrível”, afirma Leandro Toporowicz. “Houve identificação com as personagens – nas quais elas projetavam a si mesmas ou outras pessoas – e com as situações vivenciadas no romance. Essa identificação, ao mesmo tempo em que causava uma reflexão acerca de acontecimentos pessoais, propiciava um desprendimento das próprias identidades e do meio no qual vivem. No romance há um episódio que descreve uma máquina que apaga as lembranças ruins e, durante a leitura desse trecho, uma das participantes comentou, com um misto de graça e tristeza: ‘É de uma assim que eu preciso’”, lembra Leandro.
E muitas outras apenadas deram depoimentos. Aqui elas não têm nomes, para manter o sigilo de suas identidades, mas todas manifestaram a satisfação em integrar a Roda de Leitura. “Só tenho a agradecer, principalmente a Deus, pela oportunidade de trazer até o Sistema Penitenciário esses mediadores da Fundação Cultural de Curitiba”, disse uma delas. “Muito obrigada por investir em nós e trazer cultura, mas não só cultura como também confiança”, ressaltou outra. “Não desistam de nós”, apelou mais uma.
E é a vontade de continuar o trabalho que move os jovens mediadores. “Na PFP há agora uma pequena cela que contém cerca de 70 obras de ficção, recebidas por meio de doações, além dos livros técnicos doados pela FCC. Essas obras precisam atender a ânsia por narrativas das cerca de 200 detentas. Depois dos nossos encontros na Roda de Leitura, teve início um processo de dissecação da biblioteca. Durante as visitas também levamos doações – livros nossos que não lemos mais, dos nossos amigos que souberam das visitas e quiseram contribuir. Cada livro doado foi dormir em alguma cela e cerca de 200 páginas em média foram devoradas em um dia por muitas das apenadas”, conta Lilian.
Nascida em Londrina, Lilian veio para Curitiba em 2009 para cursar Letras na Universidade Federal do Paraná, interessada em estudar literatura francesa. Hoje, sua visão é outra. Pensa em esmiuçar os processos de leitura, ampliando o acesso à literatura em todas as suas vertentes. Trabalhando no Bondinho da Leitura, na Rua das Flores, Lilian completa: “A ideia é ir devagar, pois precisamos atender a incontáveis instituições na cidade, além dessa demanda, mas com ações bem dirigidas”.

Sensibilidade e experiência – Na Penitenciária Central do Estado (PCE), a Roda de Leitura sob a denominação de A Fase Hieroglífica do Pensamento permitiu que dez apenados tivessem a oportunidade de conhecer obras como Campo Geral, de Guimarães Rosa – uma narrativa extremamente lírica, que demonstra a emoção e o poder das palavras –, Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto – poema dramático sobre a triste saga de um imigrante nordestino, abordando aspectos climáticos e socioeconômicos –, e Memórias do Subsolo, romance realista de Fiódor Dostoiévski, com questionamentos sobre a sociedade.
 “A impressão que tive ao término da primeira sessão da Roda de Leitura foi a mais positiva possível. Os participantes não só interagiram bem com as obras como demonstraram interesse na continuidade da atividade e, o que é mais importante, reconheceram que a mediação foi fundamental para auxiliá-los a travar uma relação mais ativa e enriquecedora com os textos”, analisa Murilo Coelho, mediador da Fundação Cultural de Curitiba.
Murilo defende a literatura como fonte de troca de experiências, envolvendo sensibilidade e experiências que nos tornam realmente semelhantes uns aos outros: “Afinal, qual ser humano não conhece a dor, o ódio, a solidão, o sofrimento, o amor, a amizade, a traição? A literatura trata dessas e de outras questões que estão tão fora de moda em nosso contexto contemporâneo, colocando-nos diante da própria vida e no coração de suas mais tensas contradições e aflições”.
Junto com o também mediador Bruno San’Roman, Murilo desenvolveu a Roda de Leitura, lembrando que a ação não se restringe somente à leitura de textos, englobando também discussões a respeito de questões sociais, psicológicas, estéticas e afetivas, que estão ausentes de nossa sociedade, a cada dia mais sectária e individualista.

Estudante de Letras Português da Universidade Federal do Paraná, Murilo Coelho integra a equipe da Casa da Leitura Miguel de Cervantes, na Praça da Espanha, e pretende que a atividade no presídio seja a primeira fase de uma longa parceria entre a Fundação Cultural e a Secretaria de Justiça. “Somente aqueles que amam a cultura sabem o quanto esse prazer é revigorante e fundamental para nós que trabalhamos em um país tão desafeito à educação”, enfatiza.

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